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O Imortal

O escritor argentino Jorge Luís Borges espanta o seu leitor seja pela ilimitada cultura como também pela invejável capacidade de criação. Dirigiu a biblioteca de Buenos Aires e era cego.
No seu livro “O Aleph” deixou um conto que ultrapassa qualquer medida de tempo e espaço. Chama-se “O Imortal”.

Nele relata que em junho de 1929 foi encontrado um papiro em Londres no qual um soldado romano narrou a sua epopeia; saindo de uma batalha ocorrida nas margens do Mar Vermelho, avançou no sentido do ocidente em busca da cidade onde viviam os imortais. Espera encontrar Homero na Cidade dos Imortais. Tinha por ele uma imortal admiração.

Atravessou o deserto até encontrar a Cidade dos Imortais, toda bordada por infinitos labirintos, escadas erráticas, portas inúteis e nada de Homero. Ninguém habitava a Cidade dos Imortais.
Encontrou um grupo de trogloditas residindo nas redondezas em cavernas. Eram mudos. E como não sabem falar, não sabem ler e nem escrever. São mortais porque são homens para ser trogloditas.

Todos os animais existentes na terra são imortais porque não sabem que vão morrer. Com exceção dos homens que sabem que vão morrer. São naturalmente mortais.

O romano passou aviver entre os trogloditas que não moravam na Cidade dos Imortais que poderia servir de habitação para Home­ro. Nunca para uma horda de analfabetos. Os trogloditas cavernosos não demonstravam nem sequer um pingo de emoção. Para nada.

Melhor dizendo, num único dia, aqueles estranhos habitantes demonstraram alguma reação quando foram surpreendidos por uma chuva que, ao cessar, voltaram ao seu estado anterior.

O romano aproximou-se mais de um troglodita que o acompa­nhou por todos os lados, inclusive para tentar compreender porque existe ali a Cidade dos Imortais circundada por analfabetos. Indo e vindo entre os trogloditas, o romano passou a chamá-lo pelo nome de Argos que na Odisseia é o cão de Ulisses deixada por Homero.

Passados os tempos, o romano decidiu partir. Virou-se para Argos e comunicou-lhe que ia embora, muito embora tivesse certeza que o seu interlocutor não fala e se fala, nada entende. Adeus, Argos, disse.

Para sua enorme surpresa, Argos começou a falar e dirigiu-se para o romano, disse: “Argos é o cachorro do Ulisses”. Mas então o troglodita falou. Sim, falou e voltou a falar dizendo para o abestalha­do romano: “Este cachorro foi tirado do esterco”.

O romano dirigiu-se para o troglodita, indagando o que ele sa­beria da Odisseia, recebendo a mais espantosa de todas as respostas. Muito pouco. Menos do que uma rapsódia mais pobre. Já se passa­ram mil e cem anos que eu a inventei”.

O romano estava defronte do verdadeiro e imortal Homero, por ele tão procurado e não apenas na presença de um troglodita que nem ao menos sabia falar, quanto mais ler e escrever, conferindo-lhe a incompossibilidade de ter escrito a Odisseia, criando a figura de Ulisses e do seu cão Argos.

Como foi registrado, Jorge Luís Borges imortalizou-se pela sua insuperável capacidade de criação, mesmo reconhecendo-se que cego administrou a mais extraordinária biblioteca da Argentina.

Sempre preocupado com o tempo, em outro texto Borges refu­tou a sua existência do tempo, comunicando a uma Helena que se emocionava ao passar numa das múltiplas esquinas de Buenos Aires. Nunca se perde um grande amor, disse ele, pois só se perde aquilo que nunca se teve.

Ocupar os dias da quarentena, voltando a ler Borges, torna possível crer que os cegos identificam a esquina saudosa de Buenos Aires e os mu­dos imortalizam-se com as letras gregas revelando que Argos é o cachorro de Ulisses, mesmo num local perdido denominado Cidade dos Imortais.

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